Falando de Dinheiro | Não parece, mas é

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Falando de Dinheiro | Não parece, mas é

Sou uma pessoa que não se adapta rapidamente às mudanças. Um antiquado, podemos dizer. Quando o assunto é livro, defendia a tradição com unhas e dentes: tem que ser físico, quero passar a página, sentir o cheiro do papel. Essa era a frase pronta que eu usava sempre que alguém falava sobre o Kindle.

Ainda assim, dei uma chance à tecnologia. Comprei um Kindle e tentei ler em alguns momentos, mas não embalava. Faltava alguma coisa: o virar da página, abrir e fechar o livro, a dor quando pinga uma gota de café em um canto da folha…

O livro físico continuou ditando as regras por aqui. Até que veio aquela sensação de quem é alertado o tempo todo, teima em não dar ouvidos e, no final, precisa baixar a cabeça e aceitar. E lá se vai o cão arrependido depois do “eu avisei”.

Isso aconteceu após a mudança que fizemos no ano passado. As três caixas de livros que estão aqui ao meu lado no escritório me lembram, a todo momento, do peso e do trabalho que deram. Os livros vão fazer aniversário encaixotados. É até uma crueldade manter tanta coisa boa (algumas nem tanto assim, confesso) presa dentro de caixas.

Isso me fez repensar a praticidade de usar mais o Kindle. Ainda que seja estranho ter de carregar um equipamento na tomada para poder ler um livro, começou a se tornar uma opção válida. E tem sido assim nos últimos tempos: mais Kindle, menos livro físico.

Com esse novo hábito, passei a ler enquanto tomo café e também depois de servir o jantar do Pedro. Chego em casa com ele, preparo a comida dele e o jantar para mim e Amanda. Coloco o prato dele e vou sentar por perto enquanto ele come. Aproveito para incentivá-lo a ler algum livro ou revistinha assim que termina o jantar.

Nesse horário, ele não costuma ver televisão — salvo os dias em que está passando algum jogo. Temos uma rotina diária com o uso de telas para evitar uma grande exposição. Durante a semana, ele não liga mais a TV depois do almoço, assim como não joga no celular nesses dias. Não vou dizer aqui que ele segue assim sem problemas, afinal estamos falando de uma criança de sete anos. Mas, sem dúvida, é algo que ele já incorporou à rotina.

A questão é: como tenho utilizado mais o Kindle, Pedro tem me visto ler basicamente pelo aparelho. A meu ver, isso não seria um problema, mas a gente nunca deve subestimar a mente de uma criança.

Eis que, há alguns dias, ele termina o jantar e vai para o chão brincar de Fórmula 1 com seus carrinhos.

— Pai, pode ser o comentarista?

— Rapidinho, Peu. Deixa só eu terminar de ler uma parte aqui.

— Mas não pode tela agora de noite. E você está na tela. Tem que sair da tela.

— Não, Peu. Tô lendo um livro.

— Mas é uma tela.

Fiquei alguns segundos em silêncio, pensando se iria rebater ou me dar por vencido na discussão. Afinal, estava mesmo em uma tela. Era um livro, eu sabia, mas não deixava de ser uma tela. Ali, entendi que não iria convencê-lo do contrário.

O Kindle até pode não parecer um livro, mas é. Sabemos disso. Não parece, mas é. Mesmo que a aparência engane.

Nesse jogo de aparência, no parecer e ser ou não parecer e ser, podemos nos meter em alguns problemas. E, muitas vezes, até problemas financeiros.

Pense no cartão de crédito. Nem parece que é dinheiro, não é? Um pedaço de plástico na carteira que, com uma senha, nos dá acesso a uma infinidade de coisas. Acesso imediato, pagamento parcelado.

Hoje em dia, nem precisa de senha. Basta aproximar, conectar ao celular ou relógio, cadastrar na internet. E, ao alcance de um clique, está tudo aquilo que queremos. Recebo agora. Pago (ou não) depois.

Ao fazer uma compra no cartão de crédito, nem sempre lembramos que estamos gastando nosso próprio dinheiro. Não é um jogo, não é uma brincadeira. É comum simplesmente comprar e jogar para o “eu do futuro” o problema de como pagar. Aí a fatura chega e vem a dor de cabeça. “Quem gastou tudo isso? Meu cartão foi clonado?”

No caso do Kindle, o não parecer muitas vezes está associado a vantagens. Tem quem se adapte melhor à leitura no aparelho, quem goste de não precisar acender a luz do quarto para ler, quem comemore poder levar centenas de livros em uma viagem sem aumentar o peso da bagagem, quem não tenha que se preocupar com onde vai guardar três caixas de livros depois de uma mudança.

Já no cartão de crédito, não dá para dizer que a praticidade só traz benefícios. Sim, o processo é mais rápido e simples. Mas justamente por ser tão fácil, alguns problemas são entregues no combo.

A compra é facilitada: basta encostar o cartão. “Nem parece que estamos pagando de verdade”, ouvi certa vez de um cliente.

E esse é o problema. Não parece, mas estamos pagando. O não parecer se acumula ao longo do mês. O prazer imediato incentiva o consumo. Tudo está ao alcance de uma aproximação. Um almoço aqui, uma compra ali, algo novo acolá. Tudo baseado no “nem parece que estamos pagando”.

Mas aí chega a fatura. E o que não parecia se transforma em uma grande dor de cabeça.

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